sábado, 6 de junho de 2015

Entrevista com Maria Auxiliadora Schmidt - "O desafio de ensinar História quando a História foi extinta nas escolas".


Ensinar a história em um período que a disciplina foi abolida do currículo escolar. Esse foi o desafio dos professores durante o regime militar (1964-1985) no país. Além do fato de os professores passarem por ‘treinamento’ oferecido pelo sistema, as matérias de História e Geografia foram substituídas pelo chamado “Estudos Sociais”. Nessa disciplina o mesmo professor teria de ensinar as duas matérias com livros didáticos que obrigatoriamente passavam pelo crivo da censura. O resultado geralmente era um ensino superficial.
Para tratar desse assunto, as professoras Maria Auxiliadora Schmidt, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Kátia Abud, da Universidade de São Paulo (USP), lançaram na semana passada o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos sobre o ensino de história no Brasil”. A obra reúne documentos do período e artigos de nove professores e pesquisadores.
Um dos artigos de João Bertolini, por exemplo, conta a passeata em março de 1964 – portanto antes do golpe militar – ocorrida em Curitiba contra o livro didático História Nova do Brasil ,que foi considerado uma obra “subversiva”. Confira os principais trechos da entrevista com Maria Auxiliadora Schmidt.
Como era ministrado o ensino de História durante o regime militar? Primeiro que nós não éramos professores de História, mas sim de Estudos Sociais. Esse modelo foi criado nos Estados Unidos pós-crise econômica de 1929. A educação foi culpada pela crise nos Estados Unidos. Passou-se a focar mais nos interesses de mercado, voltado para a sociedade industrial. Era um ensino menos intelectualizado. Juntaram História e Geografia em uma única disciplina. No Brasil, há um começo experimental dessa disciplina na década de 50, mas foi em 1971 que oficialmente abole-se de vez a História do currículo escolar.
Isso valia para todas as turmas? Do 1.º ao 4.º ano era a Integração Social, que misturava um pouco de tudo, de História a noções de higiene. Da 5.ª à 8.ª série começava a ministrar os Estudos Sociais. Fui professora dessa disciplina sem saber Geografia a fundo. Acabava focando mais na História. Os livros didáticos eram divididos: metade História e metade Geografia. Era um ensino raso. Os professores não tinham domínio de todo o assunto. Sem falar que os livros tinham um carimbo de que era autorizado pela censura. O material que usávamos em sala de aula tinha de passar pelo crivo da ditadura.
Ou seja, havia assuntos da história que não poderiam ser tratados? Sim. O golpe militar, por exemplo, só virou ‘golpe’ depois do regime militar. Antes, tínhamos de tratar o assunto como uma revolução contra o comunismo. Isso durou até 1984.
Não tinha como os professores driblarem o sistema? Sim, a gente tentava. Isso era mais comum nas escolas públicas do que nas particulares. Mas era complicado porque era algo proibido.
Pode nos contar alguma dessas experiências? Eu tentava falar, por exemplo, dos problemas sociais que existia no Brasil, o que não era permitido durante a educação do regime militar. Eu falava que esses problemas existiam em todo percurso histórico e que ainda hoje existem. Comentava sobre a Revolução dos Cravos, em Portugal (ocorrida em 1974 que depôs o regime ditatorial salazarista) e abordava que o que Portugal viveu era uma ditadura.
Havia repreensão? Fui reprimida até por pais dos alunos. As crianças ficavam impressionadas e os pais iam reclamar e indagar o motivo de eu falar isso em sala de aula. Muita gente da classe média era a favor do golpe.
Como era a preparação dos professores durante o Regime Militar? Os professores eram treinados. Tinha uma palavra chave no período, que era reciclagem. Ou seja, transformando algo velho em uma coisa nova. O governo militar estruturou isso muito bem no Paraná. Os professores eram convocados antes do começo das aulas, no início do ano, para serem ‘reciclados’ no Cetepar (Centro de Treinamento do Magistério do Estado do Paraná), no Boqueirão, em Curitiba. Assim, os professores eram adestrados.
Quanto tempo era esse preparo oferecido pelo regime? Cerca de uma semana. O professor ia pela manhã e só era liberado no final da tarde. Ficávamos o dia inteiro. Na escola, depois de fazer a ‘reciclagem’ íamos fazer o planejamento das aulas.
E como era estruturado o planejamento? O planejamento era baseado em objetivos e metas. Hoje há um debate para criar metas.
Durante todo o período do regime militar era proibido ensinar História? Apenas no 2.º grau (hoje Ensino Médio) é que havia a disciplina de História. Mas era durante um ano e duas vezes por semana. E o 2.º grau, naquela época, era escasso no ensino público. Estava concentrado na educação particular, onde a elite é que frequentava.
Ao proibir o ensino de História, o governo militar pretendia inibir as pessoas de pensar? A principal função da História é formar consciência histórica das pessoas. Claro que essa consciência também é influenciada na família, pela televisão, pela mídia, pelas conversas com os amigos. Tudo isso ajuda a formar uma cultura histórica. A escola tem a função e a responsabilidade de contribuir para a formação de uma consciência histórica para que os alunos possam estabelecer relações entre presente e passado, mas também perspectivar o futuro. A consciência histórica é fundamental para as pessoas se desanuviarem de preconceitos e estereótipos. Possibilita pensar de forma empática, se colocando no lugar do outro.
Como é o livro “50 anos da ditadura militar – capítulos sobre o ensino de História no Brasil”? O livro pode ser dividido em duas vertentes. A primeira reúne capítulos escritos por professores que viveram o período e pesquisam o assunto. São análises históricas, com o componente de que as pessoas que as escreveram eram professores de História. A outra reúne documentos publicados durante o Regime Militar que se perderam com o tempo. Muitos jovens não têm acesso a esse material, como um manifesto da Associação Nacional de História contra as propostas de ensinar História naquela época. Resolvemos colocar esses anexos como fontes históricas para o período presente.

Fonte: Gazeta do Povo

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